RAZÕES DO VETO
Ao analisar o Projeto de Lei nº 103/2021, que “Altera a redação da ementa e do art. 1º da Lei nº 4.320, de 03 de novembro de 2020, que Dispõe sobre o fornecimento de medicamentos aos idosos na rede pública de saúde e dá outras providências”, sou levado a vetá-lo na íntegra, pelas razões que passo a expor.
Não obstante os meritórios propósitos que nortearam o autor da presente proposta legislativa, óbices legais impedem sua sanção.
1. Vício formal de iniciativa.
O Projeto de Lei nº 103/2021 visa obrigar o Município de Brusque ao fornecimento gratuito de medicamentos previstos na REMUME aos usuários que apresentarem receitas prescritas por médicos particulares, conveniados ou cooperados a planos de saúde, mesmo que não atendidos pelo Sistema Único de Saúde.
Todavia, inobstante o artigo 23, inciso I, alínea a da Lei Orgânica Municipal trazer à baila que a Câmara de Vereadores tem atribuição de legislar em matéria de saúde, infere-se que a pretensão imbuída no referido Projeto Legislativo diz respeito à modificação da estruturação da lógica do SUS Municipal e, por conseguinte, na aplicação dos programas de saúde vigentes.
Não restam dúvidas de que a aprovação deste projeto legislativo criará nova estruturação à Secretaria Municipal de Saúde, eis que atingirá as políticas públicas em andamento e tenderá à reorganização dos atendimentos e tratamentos atuais e vindouros.
Sobre a legitimidade para definir os programas e políticas em saúde, o artigo 197 da Constituição Federal é certeiro ao estatuir que cabe “ao Poder Público dispor, nos termos da Lei, sobre sua a regulamentação, fiscalização e controle”.
Nota-se, então, que a Proposta em comento, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, cuja gerência cabe ao Poder Executivo e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo.
Nessa perspectiva, caso a norma fosse sancionada, evidente que ficaria a cargo do Poder Executivo toda a estruturação, implementação e execução do programa em comento, evidenciando, por conseguinte, a inconstitucionalidade da proposição, em detrimento da inobservância do princípio da separação dos Poderes.
Importante mencionar que “a Câmara pode, por deliberação do plenário, indicar medidas administrativas ao prefeito adjuvandi causa, isto é, a título de colaboração e sem força coativa ou obrigatória para o Executivo, o que não significa prover situações concretas por seus próprios atos ou impor ao Executivo a tomada de medidas específicas de sua exclusiva competência e atribuição”.
Assim, verifica-se que o presente projeto padece de vício em sua formação, tendo em vista ser originário do Poder Legislativo. Isso porque, administrar e regulamentar os serviços públicos municipais de saúde são atribuições típicas do Executivo. Portanto, se promulgada, essa Lei acabaria por ferir a independência dos Poderes, insculpidas no artigo 2º da Constituição Federal, posto que impõe ao Poder Executivo a forma de como este deve proceder em suas funções típicas.
2. Ausência de previsão orçamentária.
De inopino, observa-se que o Projeto de Lei n. 103/2021, embora ordene a criação de nova política pública em assistência farmacêutica no âmbito Municipal, não assinala quais os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos inerentes à implementação do Programa.
Não se pode olvidar que a falta de apontamento dos referidos recursos impede o cumprimento da gestão financeira responsável, tendo em vista a importância da transparência no que concerne ao dispêndio daquilo que se aprova em lei, a fim de se saber se há lastro fiscal suficiente para se sustentar inovações nas políticas públicas.
A Constituição Federal, em seu artigo 167, I e III, estabelece que são vedados “o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual” e “a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.
No mesmo sentido, cita-se o artigo 123, II e III da Constituição Estadual Catarinense e o artigo 152, II, III da Lei Orgânica Municipal.
Além disso, faz-se mister atentar-se à norma estabelecida pela Lei de Responsabilidade Fiscal que prevê, para a manutenção do equilíbrio financeiro do Ente Público, limitação aos atos administrativos e legislativos que aumentem ou reduzam receitas. Confere-se:
Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de:
I - estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e nos dois subsequentes;
II - declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias. (grifos acrescidos)
Art. 17. Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.
§1º Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio. (grifos acrescidos).
Frisa-se, ademais, que a Secretaria Municipal de Saúde, quando consultada acerca da viabilidade da proposta, asseverou que atualmente os gastos anuais referentes à assistência farmacêutica são delimitados de acordo com as políticas públicas legalmente estipuladas pelos Governos Federal e Estadual e que a alteração nesta sistemática ocasionará prejuízo imensurável às contas públicas, pois inexistirá parâmetros objetivos para a aquisição de medicamentos.
Logo, diante do exposto, conclui-se que a Proposta se mostra inconstitucional haja vista que o Poder Legislativo impõe uma obrigação que ocasiona gastos não previstos para o Município, trazendo dispêndios irregulares ao erário que além de não dispor dos recursos necessários para garantir a execução da despesa, não conta com a previsão orçamentária precedente, o que é elementar para cumprir os regramentos da Lei de Responsabilidade Fiscal.
3. Afronta à sistemática lógica do Sistema Único de Saúde.
Em síntese, o direito à assistência farmacêutica se dá dentro da lógica do sistema único de saúde, com base em sua organização, especificadamente por meio do acompanhamento e consulta com profissional médico do SUS.
É somente com a obtenção do receituário médico do SUS que se tem traduzido, de fato, a integração do paciente como efetivo usuário do SUS, respeitando-se os princípios da universalidade e integralidade:
A universalidade e a integralidade pressupõe o ingresso do cidadão no sistema único de saúde e a submissão a respectiva política pública definida nos planos de saúde correspondentes (nela incluídos os protocolos clínicos) cabendo ao MP fiscalizar a submissão destas políticas aos princípios constitucionais.
A questão, portanto, não é apenas estar na posse de um documento assinado por um médico da rede pública. A verdadeira questão por trás da obrigação legal é a efetiva integração do paciente à lógica, organização e tratamento no sistema público de saúde.
É por este motivo que o Decreto Federal n. 7.508/2011 previu no artigo 28, inciso I, II, III e IV os requisitos mínimos, presentes cumulativamente para a execução e compreensão de um acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica no Brasil, in verbis:
Art. 28. O acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe, cumulativamente:
I. Estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS;
II. Ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS;
III. Estar a prescrição em conformidade com a RENAME e os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas ou com a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos; e
IV. Ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do SUS;
§1°. Os entes federativos poderão ampliar o acesso do usuário à assistência farmacêutica, desde que questões de saúde pública o justifiquem.
§2°. O Ministério da Saúde poderá estabelecer regras diferenciadas de acesso a medicamentos de caráter especializado.
Portanto, ao permitir o acesso do paciente aos medicamentos previstos no SUS e àqueles não previstos com receituário médico não prescrito por profissional do SUS o projeto de lei em tela viola flagrantemente o disposto no artigo 28, II, do Decreto Federal n. 7.508/2011 que regulamenta a Lei Federal n. 8.080/1990 negando vigência ao referido artigo da legislação.
4. Conclusão:
Ex positis, inobstante a nobre intenção do legislador, a proposta figura-se incompatível com as disposições constitucionais em âmbito federal (art. 2º da Constituição Federal, de 1988); estadual (art. 32 da Constituição Estadual, de 1989) e municipal (art. 7° da Lei Orgânica), revelando-se inconstitucional por vício de iniciativa e imposição de obrigações ao Poder Executivo, que não pode ser compelido em sua atuação com medidas legislativas que interfiram em sua órbita de atribuições administrativas.
No mesmo sentido, as mencionadas obrigações impostas por meio da Proposição em comento ocasionariam gastos não previstos para o Município, trazendo dispêndios irregulares ao erário que além de não dispor dos recursos necessários para garantir a execução da despesa, não conta com a previsão orçamentária precedente, o que é elementar para cumprir os regramentos da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Por fim, não menos importante, frisa-se que a aprovação do referido projeto violará o disposto no artigo 28, II, do Decreto Federal n. 7.508/2011 que prevê, expressamente, que a assistência farmacêutica será garantia mediante a apresentação de receituário prescrito por médico atuante no sistema único de saúde.
Desta forma, considerando o acima exposto, não me resta alternativa senão apor veto integral ao texto aprovado.
Assim, Senhor Presidente, submeto à elevada apreciação dessa Egrégia Casa Legislativa, o veto total ao Projeto de Lei nº 103/2021.
Brusque, 17 de dezembro de 2021.
JOSÉ ARI VEQUI